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“Diagnosis and Treatment of Alcohol-Related Liver Diseases: 2019 Practice Guidance from the American Association for the Study of Liver Diseases”
Diagnosis and Treatment of Alcohol-Related Liver Diseases: 2019 Practice Guidance from the American Association for the Study of Liver Diseases.
Crabb DW, Im GY, Szabo G, Mellinger JL, Lucey MR.
Hepatology. 2019 Jul 17. doi: 10.1002/hep.30866.
Comentários: Dra. Liana Codes
Uma atualização do Guideline para o diagnóstico e tratamento das doenças hepáticas relacionadas ao álcool foi recentemente escrita por experts da American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) [doi:10.1002/hep.30866]. Nesta publicação, foi dada ênfase aos seguintes aspectos: definição dos distúrbios relacionados ao uso do álcool, screening e tratamento da doença hepática relacionada ao álcool, uso de novos biomarcadores no auxílio diagnóstico, importância de fatores de suscetibilidade genéticos e ambientais, definição de hepatite alcoólica (HA), o papel da corticoterapia e do transplante hepático precoce para hepatite alcoólica.
A doença alcoólica do fígado se associa a um estigma social importante. Para reduzir esta marca negativa, há uma tendência atualmente para substituição do termo “alcoólica” pelo termo “relacionada ao álcool”. Assim, os autores sugerem o uso dos termos “doença hepática relacionada ao álcool” (DHRA), “esteatohepatite relacionada ao álcool” (EHRA), “cirrose hepática relacionada ao álcool” (CHRA). Devido ao uso prolongado, o termo hepatite alcoólica (HA) provavelmente irá persistir.
A DHRA é responsável por taxas crescentes de mortalidade, especialmente entre os jovens. Nas mulheres, a prevalência de CHRA pode estar aumentando em ritmo mais acelerado do que entre os homens.
A avaliação da prevalência da DHRA é um desafio diante da dificuldade em identificar fase precoce da doença, habitualmente assintomática. Todos os pacientes acompanhados em nível de atenção primário ou secundário ou indivíduos hospitalizados devem fazer, rotineiramente, uma triagem para avaliar o consumo de álcool usando questionários validados. Intervenção ou encaminhamento ao tratamento devem ser oferecidos aos indivíduos com consumo de risco (AUDIT–C ≥4; AUDIT >8, bebedores compulsivos).
Embora tenham limitações, os biomarcadores podem ser pesquisados, com o consentimento prévio do paciente, no sangue, urina ou cabelo, ajudando na identificação do consumo alcoólico recente. Os biomarcadores devem ser avaliados em conjunto com outros dados clínicos incluindo enzimas hepáticas, bilirrubinas, presença de anemia macrocítica. O CDT (carbohydrate-deficient transferrin) tem meia vida de 2-3 semanas, mas sensibilidade de 25-50%, com possibilidade de resultados falso-positivos em pacientes com doença de fígado avançada. O uso do CDT na fase pós-transplante parece ter melhor acurácia. Já o EtG(ethyl glucoronide), o EtS (ethyl sulfate) e o PEth (phosphatidylethanol) têm melhor sensibilidade e especificidade, não são influenciados pela função hepática e por isso são preferíveis.
Como a abstinência é o fator mais importante para melhorar a sobrevida da DHRA, o manejo multidisciplinar com especialistas em dependência é obrigatório. Várias modalidades de tratamento podem ser oferecidas, incluindo terapia cognitiva comportamental. O uso do acamprosato ou baclofeno pode ser considerado para prevenir recaída do consumo etílico.
Variantes genéticas têm sido associadas com risco diferencial de DHRA. Polimorfismo PNPLA3 foi associado ao risco de cirrose e hepatite alcóolica. Polimorfismo TM6SF2 e MBOAT7 associados ao aumento do risco de carcinoma hepatocelular em DHRA.
Os pacientes sem doença hepática devem ser orientados quanto ao uso seguro do álcool (máximo de 2 drinks em 24 horas para os homens e 1 drink em 24 horas para mulheres). Para pacientes com doenças de fígado (por álcool ou outras etiologias como hepatites virais, síndrome metabólica ou hemocromatose) não há nível seguro de consumo e a abstinência total é recomendada.
Hepatite alcoólica
O diagnóstico de HA deve ser feito através de critérios já estabelecidos: início de icterícia dentro de 8 semanas anteriores, consumo contínuo de 40 g/d (mulheres), 60 g/d (homens) por 6 meses, com menos de 60 dias de abstinência antes do início da icterícia. AST> 50. AST/ALT> 1.5 e ambos os valores <400, bilirrubina total sérica> 3.0mg/dl. A biópsia hepática não distingue a estato-hepatite alcoólica da esteato-hepatite não alcoólica, fica reservada para situações de dúvida diagnóstica, sendo poucas vezes realizada na prática.
O aprimoramento de testes não invasivos é necessário para HA. Fragmentos circulantes de citoqueratina (CK-18), elastografia transitória, marcadores de fibrose hepática como Fibrotest podem ter um papel na avaliação da melhora da inflamação, mas até o momento nenhuma dessas ferramentas foi adequadamente validada para uso clínico de rotina em HA.
Os índices prognósticos devem ser usados para avaliar gravidade da hepatite alcoólica. A Função Discriminante de Maddrey (≥ 32), GAHS (≥ 9) e o MELD (> 20) identificam pacientes com alto risco de mortalidade em curto prazo e são usados para selecionar pacientes para tratamento com corticosteróides (prednisona 40mg/d por 28 dias em pacientes sem contra-indicações). O modelo de Lille deve ser usado para reavaliar prognóstico, identificar não respondedores (Lille > 0.45) e guiar tratamento após 7 dias de corticóide. Vários estudos mostram que a corticoterapia pode reduzir mortalidade em curto prazo. Alguns autores propuseram o emprego do modelo de Lille com 4 dias mas essa estratégia não tem validação.
As contra-indicações ao corticóide devem ser avaliadas e corrigidas. Se infecção estiver presente, antibioticoterapia deve ser iniciada antes da corticoterapia. Estratégias para proteger a função renal devem ser adotadas (evitar drogas nefrotóxicas e cautela com o uso de diuréticos). Uso de albumina e vasoconstritores pode ser considerado precocemente em pacientes com lesão renal aguda. Com a lesão renal aguda resolvida, o tratamento com corticosteróides pode ser iniciado. O sangramento gastrointestinal não é uma contraindicação absoluta para corticosteróides e, após o controle, a prednisona pode ser administrada com segurança.
Biomarcadores relacionados a eventos infecciosos como LPS, b-DNA, PCR e procalcitonina estão associados a eventos sépticos e mortalidade em 90 dias. Atualmente, não há recomendação para uso de antibióticos empíricos, de forma sistemática, na ausência de evidência de infecção.
Terapia nutricional e tratamento para manter abstinência devem ser salientados para todos os pacientes com HA. Abstinência tem benefício comprovado na sobrevida de longo prazo.
Pentoxifilina não é mais recomendada no tratamento da HA. Estudos com infliximab e etanercept foram interrompidos por mortalidade associada a eventos infecciosos. O ELAD (extracorporeal cellular therapy) não mostrou beneficio em sobrevida
A combinação de prednisona 40 mg/dia e N-acetilcisteína venosa por 5 dias pode melhorar a sobrevida em 30 dias dos pacientes com hepatite alcoólica grave. Essa combinação requer validação.
Outros tratamentos com possíveis benefícios, que ainda precisam ser melhor avaliados: uso de GCSF (granulocyte-colony stimulating fator), transplante de microbiota fecal, metadoxina, tratamentos farmacológicos desenvolvidos para NASH (non alcoholic steatohepatitis).
Transplante para DHRA
Os autores ressaltam que pacientes com cirrose hepática relacionada ao álcool Child-Pugh C ou MELD ≥ 21 devam ser considerados para transplante de fígado. A seleção de candidatos para transplante de fígado na DHRA não deverá ser baseada somente em um intervalo fixo de abstinência.
Na HA grave, o transplante hepático pode ser ponderado em pacientes cuidadosamente selecionados com perfil psicossocial favorável, quando não respondem à terapia medicamentosa.
Estudos clínicos prospectivos em pacientes com HA grave são necessários, avaliando-se a utilidade do transplante nesses pacientes. Áreas de investigação incluem a seleção de pacientes, monitoramento do uso de álcool e tratamento dos transtornos relacionados ao uso de álcool antes e depois do transplante.