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“O aumento na utilização e excelentes resultados no transplante de doadores virêmicos para hepatite C em receptores não infectados pelo vírus: resultados de transplante hepático utilizando doadores virêmicos. ”


O aumento na utilização e excelentes resultados no transplante de doadores virêmicos para hepatite C em receptores não infectados pelo vírus: resultados de transplante hepático utilizando doadores virêmicos.

Thomas G Cotter, Sonali Paul, Burhaneddin Sandikci, Thomas Couri, Adam S Bodzin, Ester C Little, Vinay Sundaram and Michael Charlton.
Hepatology, Maio 2019, em impressão.

Comentários: Dra. Ester Coelho Little


Durante muitos anos a hepatite por vírus C (HCV) foi a causa mais comum de cirrose necessitando transplante hepático nos Estados Unidos. Com a chegada dos antivirais de ação direta (DAA) a doença gordurosa do fígado ultrapassou a hepatite C nesta corrida. Tanto o número de pacientes com HCV aguardando transplante quanto o número de pacientes transplantados devido a cirrose por HCV diminuiu entre os anos de 2006 e 2016. (1,2)


Antes do advento dos DAA a sobrevida do enxerto e do paciente infectado pela HCV era inferior `aquela observada em pacientes transplantados por outras etiologias, sobretudo devido a recorrência da HVC pós- transplante (3-6). A eficácia, a boa tolerabilidade e a resposta ao tratamento da HCV com os DAA transformou a história das infecções por HCV e viabilizou a utilização de órgãos infectados para fins de transplante.


Os autores deste estudo fizeram as seguintes hipóteses: 1) que o advento dos DAA e a epidemia do uso de opióides nos Estados Unidos (EU) teria aumentado a utilização de enxertos com anticorpos contra o HCV (anti-HCV +), e também de doadores com infecção pela HCV confirmada pelo teste do ácido nucleico (PCR +), ou seja, doadores virêmicos; 2) que o resultado dos transplantes utilizando enxertos de doadores anti-HCV positivos ou virêmicos, tivesse sido semelhante aos transplantes de enxertos não infectados, e 3) que doadores anti-HCV positivos ou virêmicos fossem mais jovens e mais magros que os doadores negativos.

 

PACIENTES E MÉTODOS:


Os dados utilizados foram extraídos do Registro Cientifico de Receptores de Transplantes no período de 1 de Janeiro de 2008 a 31 de Janeiro de 2018. Todos os pacientes incluídos eram adultos com idade mínima de 18 anos, transplantados pela primeira vez, haviam recebido somente o fígado e de um doador cadáver, e nenhum deles tinha o diagnóstico de insuficiência hepática fulminante.
Os resultados foram divididos em duas partes. Na primeira parte a sobrevida do enxerto foi analisada em dois grupos, Grupo 1- Receptores não infectados pelo HCV que receberam enxertos positivos para o anticorpo do HCV (R-/DAc +) e Grupo 2-Receptores infectados pelo HCV que receberam enxertos positivos para o HCV (R+/DAc+). Os grupos foram analisados e comparados na era pré e pós- aprovação dos DAA Simeprevir e Sofosbuvir.
Na segunda parte, os resultados foram analisados de acordo com a viremia do doador, determinada pela presença ou não do RNA do HCV pelo teste de amplificação do ácido nucleico. Os resultados foram comparados entre os grupos doador negativo e receptor negativo (DRNA-/R-) e doador positivo e receptor negativo (DRNA +/R-), e entre doador positivo e receptor negativo (DRNA +/R-) e doador positivo e receptor positivo (DRNA+/R+).


RESULTADOS


DOADORES ANTI-HCV POSITIVOS:


No período do estudo 2.635 enxertos positivos para o HCV foram utilizados. Destes, 2.378 foram transplantados em receptores positivos e 257 em receptores negativos para o HCV.
Na era pós-DAA, de todos os fígados transplantados nos EU, 7.1 % foram provenientes de doadores anti-HCV positivos, comparados com 3.7% na era pré-DAA (p< 0.001). O número anual de enxertos anti-HCV positivos transplantados em receptores positivos (DAc +/R +) aumentou de 148 em 2008 para 385 em 2017. O número de enxertos anti-HCV positivos transplantados em receptores negativos (DAc+/R-) aumentou de 7 em 2008 para 107 em 2017.
Receptores não infectados pelo HCV que receberam enxerto anti-HCV positivos (DAc +/R-) na era pós-DAA tiveram um MELD score mais alto, um tempo mais longo na lista de transplante, e um número menor deles tiveram diagnóstico de carcinoma hepatocelular (CHC), comparado a era pré-DAA. Os pacientes infectados pelo HCV que receberam enxerto anti-HCV positivo (DAc+/R+) na era pós-DAA tiveram um MELD score semelhante, porém eram mais idosos e receberam enxertos de doadores mais jovens comparados a era pré-DAA.
Receptores não infectados pelo HCV que receberam enxertos anti-HCV positivos (DAc+/R-) receberam enxertos de doadores mais jovens e mais magros e tiveram um período mais longo na lista de espera, comparados aos pacientes não infectados que receberam enxertos anti-HCV negativos (DAc-/R-). Receptores infectados pelo HCV que receberam enxertos anti-HCV positivos (DAc+/R+) passaram 90 dias menos na lista de espera, comparados aos pacientes não infectados que receberam enxertos negativos (DAc-/R-).


Na era pós-DAA a sobrevida do enxerto foi superior àquela da era pré-DAA em todos os pacientes, porém, a diferença foi mais notável no grupo de pacientes não infectados pelo VHC que receberam enxertos anti-HCV positivos. Nestes pacientes, o aumento na sobrevida de 3 anos subiu de 79 para 88%.
Na era pré-DAA, pacientes que receberam enxertos anti-HCV positivos tiveram uma menor sobrevida de 3 anos comparados aos receptores de enxertos anti-HCV negativos, 78.1 versus 81.2 % (p<0.001). Esta diferença desapareceu na era pós-DAA, 85.1 versus 84.5 (p= 0.169).


DOADORES HCV RNA POSITIVOS:


A utilização do teste do ácido nucleico para detecção de HCV RNA no doador começou a ser utilizada em 2014. De 2014 para 2017 o número de transplantes de enxertos HCV RNA positivos em receptores não infectados pelo HCV (DRNA +/R-) aumentou de zero para 46. O número de transplantes de enxertos RNA positivos em receptores infectados pelo HCV (DRNA+/R+) aumentou de 8 para 269.


Comparados com o grupo de receptores não infectados que receberam enxertos não infectados (R-/DRNA -), os receptores não infectados que receberam enxertos virêmicos (R-/DRNA +) receberam órgãos de pacientes mais jovens e mais magros, e um número menor de órgãos foi transplantado depois da parada cardíaca. Os receptores deste grupo eram mais velhos, tiveram MELD score mais baixo e passaram maior tempo na lista de espera.

 

O grupo de receptores infectados pela HCV que receberam enxertos virêmicos (D RNA +/R+) também receberam órgãos de doadores mais jovens e mais magros, e um número menor de órgãos transplantados depois da parada cardíaca comparados ao grupo de receptores infectados pela HCV que receberam enxertos não virêmicos (R+/DRNA -). Os receptores do grupo R+/DRNA+ tiveram idade, índice de massa corpórea (IMC) e MELD score semelhante, mas o tempo de espera na lista de transplante foi mais curto.


A sobrevida do enxerto 1 e 2 anos após o transplante foi semelhante nos 4 grupos, e os resultados permaneceram semelhantes quando pacientes que faleceram nos primeiros 90 dias após o transplante foram excluídos. Não houve diferença na causa de falência do enxerto ou nos fatores preditivos de falência do enxerto no grupo de doadores virêmicos comparados aos não virêmicos.


COMENTÁRIOS:


O estudo confirmou as hipóteses dos autores de que na era pós-DAA houve um aumento na utilização de enxertos anti-HCV positivos e também na sobrevida de enxertos e de pacientes infectados pelo HCV. Além disso, não houve diferença na sobrevida de enxertos anti-HCV positivos comparados com enxertos anti-HCV negativos.


Resultados de transplantes tanto de enxertos anti-HCV positivos quanto de enxertos virêmicos em pacientes infectados pela HCV foram superiores aos resultados na era pré-DAA. Esta melhora chegou ao ponto de igualar a sobrevida destes pacientes aquela dos receptores infectados pelo HCV que receberam enxertos anti-HCV negativos ou não virêmicos. Dados semelhantes já haviam sido observados (7), porém este estudo mostrou que esta melhora vai até o terceiro ano após o transplante.


Houve também um aumento na utilização de enxertos virêmicos em receptores não infectados pelo HCV, e este aumento foi 30 vezes maior na era pós-DAA. O aumento na utilização de enxertos virêmicos não alterou a sobrevida 1 e 2 anos após o transplante, e não houve diferença na causa ou nos fatores preditivos de falência do enxerto. Os resultados de transplantes de enxertos virêmicos em receptores infectados e não infectados foi semelhante.


Estes fatos têm grande importância nos Estados Unidos, onde a disponibilidade de doadores infectados pelo HCV está projetada para aumentar na próxima década (8).
Quando enxertos virêmicos foram transplantados em receptores infectados pelo HCV, houve uma redução no tempo na lista de transplante. Tal redução não foi vista quando enxertos virêmicos foram transplantados em receptores não infectados. Pode-se especular que pacientes infectados que estivessem na lista de espera por períodos mais longos, fossem mais propensos a aceitar um doador virêmico.


O estudo mostrou também que receptores infectados pelo HCV que receberam enxertos virêmicos eram mais jovens, um número menor deles estava no hospital ou na UTI, e um número menor tinha CHC. Estes dados sugerem que houve um bias de seleção, e que enxertos virêmicos foram transplantados em receptores com doença hepática menos avançada.


Doadores anti-HCV positivos e doadores virêmicos eram mais jovens e tinham um IMC menor que os doadores não virêmicos, provavelmente um reflexo da epidemia do uso indiscriminado de opióides que resultou num aumento do número de mortes por overdose de heroína (9).


Pacientes não infectados pelo HCV que receberam enxertos virêmicos tiveram um MELD score menor e um tempo mais longo na lista de espera, sugerindo um certo critério na seleção destes pacientes. A expectativa teria sido de que pacientes nos quais o MELD score não refletisse a severidade da doença ou a precária qualidade de vida, se beneficiariam mais ao receber um enxerto virêmico.


Talvez o dado mais importante do estudo tenha sido o aumento da utilização e os excelentes resultados observados quando enxertos virêmicos foram transplantados em receptores não infectados pelo HCV. Este fato não havia sido previamente documentado e mostra que a chegada dos DAAs não só mudou a história da hepatite por vírus C, mas também a história do transplante hepático, criando a oportunidade de expandir o uso de enxertos tanto anti-HCV positivos, como de enxertos virêmicos. Além do efeito dos DAA, existem outros fatores que podem ter interferido nos resultados, entre eles, o fato dos pacientes que receberam enxertos virêmicos terem um MELD score mais baixo, serem provavelmente mais saudáveis, e terem recebido enxertos de doadores mais jovens, com menor IMC e um menor número de doações depois de parada cardíaca.


O estudo tem limitações, primariamente limitações inerentes a utilização de um registro que não coleta dados mais específicos, como por exemple o tratamento recebido pelos pacientes infectados pelo HCV. O diagnóstico de infecção pelo HCV foi inferido da informação dos diferentes centros, e além disto houveram alguns dados incompletos.


A despeito das limitações, os resultados são promissores. Porém, antes de extrapolarmos os resultados e passarmos a utilizar enxertos virêmicos indistintamente, alguns fatores precisam ser melhor esclarecidos, incluindo acesso ao tratamento da infecção pela HCV, variações regionais na disponibilidade de órgãos, outras variáveis que possam afetar a qualidade do enxerto, como presença de esteatose e doação depois da parada cardíaca. Todavia, desde que feita de forma criteriosa, com uma seleção cuidadosa do par doador/receptor, a utilização de enxertos virêmicos pode e deve ser considerada. Diante dos resultados deste estudo, vale questionarmos se doadores virêmicos devem continuar sendo rotulados como doadores de alto risco. Talvez, a utilização de enxertos virêmicos seja a opção mais apropriada para certos pacientes com um MELD score alto, e teoricamente esta prática pode não só aumentar o número de enxertos disponíveis para este grupo de pacientes, como também vir a diminuir a mortalidade na lista de espera e até mesmo a necessidade de se utilizar doadores vivos.

BIBLIOGRAFIA


1) Kim, WR, Lake JR, Smith JM et al. Am J Transplant 2018:18 (Suppl1): 172-253
2) Wong RJ, Aguilar M, Cheung R et al. Gastroenterology 2015;148:547-555
3) Forman LM, Lewis JD, Berlim JA et al. Gastroenterology 2002;122:889-896
4) Charlton M, Seaberg E, Wiesner R et al. Hepatology 1998;28:823-830
5) Jacobson IM, McHutchison JG, Dusheiko G et al. N Engl J Med 2011;364:2405-2416
6) Poordad F, McCone J Jr, Bacon BR et al. N Engl J Med 2011;364: 1195-1206
7) Cholankeril G, Li AA, March KL et al. Clin Gastroenterol Hepatol 2018; 16:452-453
8) Rein DB, Wittenborn JS, Weinbaum CM et al. Dig Liver Dis 2011;43:66-72
9) Centers for Disease Control and Prevention.
Surveillance for viral hepatitis—United States, 2016. https://www.cdc.gov/hepatitis/statistics/2016surveillance/pdfs

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