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“Burden of liver diseases in the world”


Burden of liver diseases in the world.

Sumeet K. Asrani, Harshad Devarbhavi, John Eaton, Patrick S. Kamat.
J Hepatol 2019;151-171


Comentários: Dra. Cristiane Tovo


Na revista Journal of Hepatology do mês de janeiro deste ano, foi publicado um interessante artigo sobre o burden das doenças hepáticas no mundo (1).


As doenças hepáticas crônicas são responsáveis por aproximadamente 2 milhões de mortes anuais no mundo, sendo 1 milhão devido a complicações decorrentes de cirrose e 1 milhão devido a hepatites e carcinoma hepatocelular (CHC) (2). A cirrose e o CHC são respectivamente a 11ª e 16ª causas mais comuns de morte no mundo, sendo responsáveis por 3,5% de todas as mortes (3). Além do maior risco de mortalidade, as doenças hepáticas crônicas promovem um alto impacto econômico e baixo índice de qualidade de vida (4), sendo a cirrose uma das 20 principais causas de anos de vida perdidos (3,6).


No Brasil, um estudo analítico observacional ecológico foi realizado, sendo pesquisados os dados relativos às admissões hospitalares e óbitos no sistema público de saúde (através do DATASUS) entre 2001 e 2010. Neste cenário, as doenças hepáticas foram a 8ª causa de morte, sendo a cirrose a principal causa de admissão hospitalar e óbito no Brasil (7).


Doença hepática associada ao álcool: A doença hepática associada ao álcool (DHAA) é uma das principais causas de doença hepática em todo o mundo (6). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 2 bilhões de pessoas consomem álcool em todo o mundo, e mais de 75 milhões são diagnosticados com abuso de álcool, sendo considerado o principal fator de risco global para óbito entre aqueles com menos de 20 anos (8). A progressão para cirrose pode ser maior em pacientes com DHAA em comparação com aqueles com doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA). A obesidade também pode potencializar a gravidade de todas as etapas da DHAA (9) Na DHAA, a mortalidade é maior na presença de hepatite alcoólica. Além disso, a mortalidade por DHAA parece ser maior do que a mortalidade por DHGNA (36% vs 7% respectivamente ) (10).


Doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA): Tem havido um aumento na prevalência de DHGNA em todo o mundo. De forma análoga à DHAA, na DHGNA há alta prevalência de fatores de risco coexistentes, como obesidade e diabetes (11). Grande parte do aumento mundial da DHGNA é impulsionado pelo aumento da obesidade; no entanto padrões de prevalência aumentada nem sempre se correlacionam com as áreas geográficas de maior consumo calórico, sugerindo que outros fatores podem levar à progressão entre os pacientes com a DHGNA (12). A prevalência da obesidade aumentou 6 vezes nas últimas 4 décadas (13), sendo o aumento observado entre as crianças ainda mais preocupante (http://www.ncdrisc.org/index.html).


A prevalência de DHGNA varia entre 8 e 45%, dependendo da população avaliada (14,15). A prevalência global de DHGNA foi estimada em 25,2%, sendo acima de 30% no Oriente Médio e na América do Sul (16). Fatores genéticos também podem afetar e distribuição étnica da DHGNA (17), e entre os pacientes magros a prevalência de DHGNA é de 7% (18).


A progressão da fibrose é lenta entre os pacientes com DHGNA, ocorrendo a uma taxa de 0,09 estágio / ano, sugerindo que a progressão de um paciente com fibrose estágio 2 para cirrose ocorra em 20 anos. A progressão de 1 estágio de fibrose ocorre em 14,3 anos para pacientes com esteatose e 7,1 anos para pacientes com esteatohepatite não alcoólica (EHNA), e apenas 5% dos pacientes com DHGNA irão progredir para cirrose ao longo de 20 anos ou mais (19). A grande maioria dos pacientes com DHGNA morre de causas não relacionadas ao fígado, particularmente eventos cardiovasculares. O impacto da DHGNA como cofator para a progressão da hepatopatia alcoólica ou hepatite viral é pouco estudado, e pode haver uma relação sinérgica entre o consumo de álcool e obesidade. Entre os pacientes com consumo de álcool abusivo, a taxa relativa de doença hepática para homens com peso normal foi de 3,16, mas foi 7,01 e 18,9 para sobrepeso e obesidade em homens, respectivamente (20).


Hepatites virais: Embora as hepatites virais afetem indivíduos em todas as regiões geográficas, aquelas provenientes de países de baixa e média renda são desproporcionalmente afetadas (21). Em 2010, as mortes por hepatites virais representaram 0,3 milhões de mortes por ano, um aumento de 46% em relação a 1990 (22). Durante o período de 1990 a 2013, o número absoluto de mortes relacionadas às hepatites virais (de infecção aguda, cirrose e câncer) aumentou em 63% (23). As hepatites virais ocupavam o 10º lugar como causa de mortalidade em 1990, passando para a 7ª causa de morte em 2013 (24).


Hepatite A (VHA): Aproximadamente 1,5 milhões de casos de VHA ocorrem anualmente em todo o mundo (25), e a infecção pelo VHA está intimamente relacionada aos índices socioeconômicos. Como resultado, regiões de alta renda têm endemicidade muito baixa, mas uma proporção maior de adultos suscetíveis. Países de baixa renda têm altos níveis de endemicidade, principalmente de infecção em crianças, e poucos adultos suscetíveis (26). A imunização com vacina contra o VHA juntamente com melhora nos índices socioeconômicos tem reduzido a incidência em países de alta e média renda.


Hepatite B (VHB): Estima-se que 257 milhões de pessoas (3,5% da população mundial) estejam infectados cronicamente pelo VHB, e aproximadamente 56.000 mortes por ano são atribuídas à cirrose relacionada à hepatite B e câncer de fígado. Com o aumento da cobertura vacinal contra o VHB, espera-se reduzir a incidência de novas infecções e suas complicações (21). Aumentar o rastreamento em gestantes, tratar com antivirais quando necessário e imunizar as crianças logo após o nascimento em países onde a transmissão vertical é a principal via de infecção, são medidas que colaboram para a redução o burden relacionado ao VHB (27).


Hepatite C (VHC): A prevalência global da infecção pelo VHC é estimada em 1%, correspondendo a 71 milhões de pessoas que vivem com infecção crônica pelo VHC atualmente (21). O genótipo mais comum é o genótipo 1 (44%), seguido pelo genótipo 3 (25%), genótipo 4 (15%) e outros (16%) (28). Estimativas da prevalência de anticorpos anti-VHC entre pessoas que injetam drogas é quase 50 vezes maior do que a população geral (29). Estima-se que 1,75 milhão de novos indivíduos sejam infectados anualmente, sugerindo que o burden do VHC pode continuar a crescer (21). Aproximadamente 400.000 pessoas morrem a cada ano em decorrência da infecção pelo VHC, principalmente de cirrose e CHC (30). O tratamento e a obtenção de resposta virológica sustentada estão associados a uma considerável redução do risco de CHC, particularmente naqueles sem cirrose. Dos 71 milhões de pessoas que vivem com HCV, apenas 14 milhões (20%) estão diagnosticados com a infecção, e dentre os 950.000 pacientes já tratados no mundo (31), estima-se que 700.000 tenham atingido resposta virológica sustentada, representando apenas 1% da população total (21).


Hepatite D (VHD): Aproximadamente 12,5 a 15 milhões de pessoas são infectadas em todo o mundo (32,33). Embora a prevalência esteja diminuindo na América e na Europa como resultado da vacinação contra o VHB, um aumento na Europa Ocidental tem sido atribuída à migração de países endêmicos de alta densidade populacional, como Romênia, Turquia, Repúblicas da Ásia Central e África (34,35).


Hepatite E (VHE): Estima-se que existam 20 milhões de pacientes infectados pelo VHE no mundo (36). Em 2015, a OMS estimou que o VHE causou aproximadamente 44.000 mortes (3,3% das mortes por hepatites virais) (21). Tem havido crescente reconhecimento de infecção autóctone por VHE nos países ocidentais, principalmente pela ingestão de produtos animais contaminados (cervo, javali) (37). A hepatite pelo VHE causa hepatite aguda autolimitada e raramente promove a insuficiência hepática aguda (IHA), embora mulheres grávidas no último trimestre estejam particularmente sob risco de IHA (38), e pode haver progressão para cirrose (39).


Outras doenças hepáticas: Os estudos referentes às doenças colestáticas (colangite esclerosante primária – CEP e colangite biliar primária - CBP), doenças autoimunes, doenças genéticas (D. de Wilson) e dano hepático induzido por drogas são escassos.
Projeções: As doenças hepáticas são responsáveis por parcela representativa das doenças e custos no mundo. O uso de álcool e hepatites virais são as principais causas de doenças hepáticas crônicas. Vacinação e novas drogas podem reduzir o burden relacionado às doenças hepáticas virais em países desenvolvidos, mas em locais onde o acesso aos recursos de saúde é limitado, as hepatites virais ainda serão um desafio. A DHGNA e o álcool também irão aumentar e se tornar principais causas de doenças hepáticas crônicas no mundo ocidental (1).

 

Referências

1. Sumeet K. Asrani, Harshad Devarbhavi, John Eaton, Patrick S. Kamat. Burden of liver diseases in the world. J Hepatol 2019;151-171.
2. Mokdad AA, Lopez AD, Shahraz S, Lozano R, Mokdad AH, Stanaway J, et al. Liver cirrhosis mortality in 187 countries between 1980 and 2010: a systematic analysis. BMC Med 2014;12:145.
3. WHO. Global health estimates 2015: deaths by cause, age, sex, bycountry and by region, 2000–2015. Geneva: World Health Organization; 2016.
4. Stepanova M, De Avila L, Afendy M, Younossi I, Pham H, Cable R, et al.
Direct and indirect economic burden of chronic liver disease in the United States. Clin Gastroenterol Hepatol 2016.
5. WHO. Global health estimates 2015: disease burden by cause, age, sex,
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