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“A Placebo-Controlled Trial of Bezafibrate in Primary Biliary Cholangitis (BEZURSO)” – publicado em Junho 2018


Comentários sobre o artigo A Placebo-Controlled Trial of Bezafibrate in Primary Biliary Cholangitis. Christophe Corpechot, M.D., Olivier Chazouillères, M.D., Alexandra Rousseau, Ph.D., Antonia Le Gruyer, M.D., François Habersetzer, M.D., Ph.D., Philippe Mathurin, M.D., Ph.D., Odile Goria, M.D., Pascal Potier, M.D., Anne Minello, M.D., Ph.D., Christine Silvain, M.D., Armand Abergel, M.D., Ph.D., Maryline Debette-Gratien, M.D., Ph.D. et al.. TN Engl J Med 2018; 378:2171-2181. DOI: 10.1056/NEJMoa1714519.


Dra. Cynthia Levy


 

Introdução

Colangite biliar primária (CBP) é uma enfermidade crônica que afeta os pequenos ductulos biliares, causando sua destruição e o desenvolvimento progressivo de cirrose biliar.  O tratamento com acido ursodeoxicolico (AUDC), instituído há décadas como base terapêutica em CBP, leva à melhora bioquímica e evolução mais lenta para cirrose (1, 2). Estudos recentes confirmam uma taxa de mortalidade mais baixa entre os pacientes que receberam AUDC comparada a pacientes sem tratamento ou com resposta bioquímica incompleta ao tratamento (3, 4). Estima-se que até 40% dos pacientes com CBP não respondam bem a AUDC, mantendo elevada a fosfatase alcalina sérica apesar do tratamento. Essa resposta inadequada ao AUDC tem sido associada a maior frequência de complicações incluindo cirrose, desenvolvimento de carcinoma hepatocelular, transplante hepático e morte (5, 6). Portanto, é extremamente importante que novas drogas sejam disponibilizadas para o tratamento de pacientes com CBP e resposta incompleta ao AUDC.

Em maio de 2016 o ácido obeticólico (ainda não disponível no Brasil), um agonista do receptor FXR, foi aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA) para tratamento de casos refratários a AUDC e para pacientes intolerantes ao AUDC. O uso do ácido obeticólico combinado ao AUDC levou a redução da fosfatase alcalina em aproximadamente 20%, sem piora da bilirrubina (7). Redução de fibrose e melhora de sobrevida ainda não foram demonstrados. Além disso, infelizmente seu uso foi associado a uma frequência maior de prurido. Já os derivados do ácido fíbrico, chamados de “fibratos”, estão facilmente disponíveis no Brasil e em várias partes do mundo, aprovados para o tratamento de dislipidemias. Fibratos são agonistas do receptor nuclear PPAR (receptor ativado por proliferadores de peroxissoma) e pequenos estudos anteriores já sugeriram que o uso de fibratos em pacientes com CBP leva a melhora da fosfatase alcalina sérica e possivelmente a melhora do prurido (8, 9).

No artigo em questão, os autores buscaram avaliar o efeito da adição de bezafibrato, um agonista pan-PPAR, ao AUDC no tratamento de pacientes com CBP com resposta inadequada ao AUDC (10).

 

Metodologia

Pacientes com CBP e resposta inadequada ao AUDC, definida como fosfatase alcalina sérica ou transaminase glutâmico pirúvica > 1,5 X o limite superior da normalidade ou bilirrubina total acima do limite superior da normalidade [critérios de Paris 2], foram randomizados 1:1 para receber bezafibrato 400 mg/dia ou placebo combinado ao AUDC na mesma dose anterior ao estudo (13-15 mg/kg/dia).  Pacientes com síndrome de sobreposição com hepatite autoimune e aqueles com bilirrubina > 3 mg/dL foram excluídos.
A duração do tratamento foi de 24 meses e o desfecho primário foi a percentagem de pacientes com resposta bioquímica completa, isto é, normalização de todas as provas hepáticas ao final do estudo. Como objetivos secundários, o estudo avaliou a proporção de pacientes com normalização da fosfatase alcalina em 24 meses; mudanças nos níveis séricos de fosfatase alcalina, transaminase glutâmico pirúvica, transaminase glutâmico oxalacética, gama-glutamil transpeptidase, bilirrubina total, albumina, colesterol total e frações, tempo de protrombina e plaquetas;  proporção de pacientes com respostas bioquímicas definidas por vários critérios; mudanças na intensidade do prurido, fadiga e qualidade de vida; mudanças na rigidez hepática por elastografia; desenvolvimento de hipertensão portal e sobrevida sem complicações hepáticas ou transplante. Havia também vários objetivos secundários de natureza mais exploratória, como por exemplo avaliar mudanças no “ELF – enhanced liver fibrosis score”.

 

Resultados

Cem pacientes foram randomizados, 50 em cada grupo; 92 completaram o estudo. As características clínicas e demográficas dos pacientes eram similares nos dois grupos. Dois pacientes no grupo do bezafibrato e 6 no do placebo saíram do estudo.

O desfecho primário foi alcançado em 31% dos pacientes recebendo bezafibrato, comparados a 0% entre os que receberam placebo (p<0.001). Normalização da fosfatase alcalina ocorreu em 67% dos pacientes em bezafibrato, comparado a 2% com placebo, com 60% de redução media da fosfatase alcalina observada aos 3 messes entre os pacientes recebendo bezafibrato.  Ao mesmo tempo em que a bilirrubina baixou em 14% no grupo do bezafibrato, ela aumentou em 18% no grupo do placebo.  A tabela 1 resume os resultados mais importantes do estudo em termos de mudanças nos exames laboratoriais, e a tabela 2 resume os resultados gerais do estudo.

 

Teste

Bezafibrato

Placebo

Diferença (95% CI)

 

% (IQR)

% (IQR)

 

Bilirubina

-14 (-33 to 6)

18 (0-40)

-32 (-47 to -18)

Fosfatase alcalina

-60 (-66 to -46)

0 (-14 to 20)

-59 (-71 to -47)

TGO

-8 (-30 to 3)

8 (-17 to 26)

-14 (-29 to 0)

TGP

-36 (-53 to -14)

0 (-24 to 31)

-35 (-56 to -14)

Colesterol total

-16 (-24 to -9)

0 (-9 to 7)

-16 (-23 to -9)

LDL colesterol

-23 (-31 to -14)

2 (-13 to 12)

-26 (-36 to -16)

HDL colesterol

-2 (-13 to 10)

-4 (-10 to 5)

    1 (-9 to 11)

 

Tabela 1- Mudança mediana dos exames laboratoriais entre o valor inicial e ao final dos 24 meses do estudo

 

A proporção de pacientes com efeitos adversos observados durante o estudo foi semelhante nos dois grupos (49% no grupo do bezafibrato vs. 51% no grupo placebo). Efeitos adversos graves foram relatados por 14 pacientes no grupo do bezafibrato e 12 pacientes em placebo. Especificamente com relação a efeitos colaterais sabidamente associados aos fibratos encontramos: aumento de 5% vs. redução de 3% na creatinina, mialgias em 20% vs. 10%, e elevação de aminotransferases > 5 x o limite superior da normalidade em 3 pacientes recebendo bezafibrato vs. 1 paciente recebendo placebo.

 

Desfecho primário

  • Normalização das provas hepáticas em 31% dos pacientes tratados com bezafibrato vs. 0% com placebo

Desfechos secundários

  • Normalização da fosfatase alcalina em 67% com bezafibrato vs. 2% com placebo
  • Proporção de pacientes alcançando resposta bioquímica de acordo com critérios pré-estabelecidos (Barcelona, Paris 1, Paris 2, Toronto e GLOBE) foi maior entre pacientes tratados com bezafibrato
  • Rigidez hepática diminuiu em 15% nos pacientes tratados com bezafibrato e aumentou em 22% nos que receberam placebo
  • Não houve melhora nas pesquisas de qualidade de vida
  • Não houve diferença na proporção de pacientes desenvolvendo hipertensão portal em cada grupo
  • Não houve diferença nas mudanças em níveis séricos de imunoglobulinas, PCR, fator de necrose tumoral ou interleukina 12

Tolerabilidade

  • Mesma proporção de efeitos colaterais entre os grupos. Não houve aumento da frequência ou intensidade do prurido entre pacientes tratados com bezafibrato

 

Tabela 2 – Resumo dos resultados gerais do estudo

 

Comentários
Este estudo randomizado e controlado mostrou que em pacientes com CBP e resposta inadequada ao AUDC, a adição de bezafibrato leva a completa normalização das provas hepáticas em aproximadamente um terço dos casos, sem causar prurido como efeito colateral. A fosfatase alcalina, considerada atualmente o melhor marcador sérico para avaliar resposta ao AUDC, normaliza em quase 70% dos pacientes tratados, acompanhada de uma redução discreta mas significativa da bilirrubina.

De todos os estudos avaliando o uso de fibratos em CBP, este foi o mais rigoroso. Seus resultados confirmam a melhora bioquímica previamente mostrada em pequenos estudos, geralmente não-controlados. Um desses estudos foi publicado por Reig e colaboradores, onde 48 pacientes com resposta inadequada ao AUDC foram tratados com a combinação de AUDC + bezafibrato por um período médio de 37,9 meses (11). Nesse estudo, metade dos pacientes normalizou a fosfatase alcalina. Além disso, é possível que o bezafibrato exerça um efeito favorável no prurido de pacientes com CBP. Dos 48 pacientes incluídos, 26 tinham prurido, com intensidade média de 4.4 (escala de 0 a 10).  Ao final do estudo, o prurido havia resolvido em 16 e melhorado em 7 dos 26 pacientes. A intensidade média do prurido baixou de 4.4 para 0.8. No estudo BEZURSO, houve uma melhora estatisticamente significativa na intensidade do prurido relatada pelos pacientes recebendo bezafibrato. No entanto, a intensidade do prurido era muito baixa (1/10) no começo do estudo e por isso não foi possível tirar conclusões sobre o efeito do bezafibrato sobre o prurido.

Qual a importância deste estudo para pacientes com CBP? Apesar de não termos o mesmo número de pacientes incluídos em estudos rigorosos para comprovar a eficácia do bezafibrato, como foi feito com ácido obeticólico, este estudo contribui para a literatura existente e coloca o bezafibrato na lista de terapias alternativas para pacientes com resposta inadequada ao AUDC (1, 2). Isso é especialmente importante em países onde o ácido obeticólico ainda não foi disponibilizado, como no Brasil. Tão importante quanto demonstrar eficácia em termos de melhora bioquímica, o BEZURSO também mostrou segurança e tolerabilidade, com o mesmo número de efeitos adversos nos dois grupos de tratamento. No entanto, foram observados casos de hepatotoxicidade (reversíveis) assim como elevação da creatinina sem declínio da taxa de filtração glomerular.

O uso de fibratos não é recomendado em pacientes com cirrose descompensada. A presença de fibrose avançada e ductopenia são fatores preditivos de falta de resposta ao fibrato; é provável que estes pacientes não se beneficiem muito do seu uso. Finalmente, vale ressaltar que nem o ácido obeticólico nem o bezafibrato tem efeito benéfico comprovado na sobrevida dos pacientes com CBP; estudos adicionais são necessários para melhor avaliação dos efeitos a longo prazo.

 

Referências

1. European Association for the Study of the Liver. Electronic address eee, European Association for the Study of the L. EASL Clinical Practice Guidelines: The diagnosis and management of patients with primary biliary cholangitis. J Hepatol. 2017;67(1):145-72.
2. indor KD, Bowlus CL, Boyer J, Levy C, Mayo M. Primary Biliary Cholangitis: 2018 Practice Guidance from the American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatology. 2018.
3.  Lammers WJ, van Buuren HR, Hirschfield GM, Janssen HL, Invernizzi P, Mason AL, et al. Levels of alkaline phosphatase and bilirubin are surrogate end points of outcomes of patients with primary biliary cirrhosis: an international follow-up study. Gastroenterology. 2014;147(6):1338-49 e5; quiz e15.
4.  Lu M, Zhou Y, Haller IV, Romanelli RJ, VanWormer JJ, Rodriguez CV, et al. Increasing Prevalence of Primary Biliary Cholangitis and Reduced Mortality With Treatment. Clin Gastroenterol Hepatol. 2018;16(8):1342-50 e1.
5. Harms MH, Lammers WJ, Thorburn D, Corpechot C, Invernizzi P, Janssen HLA, et al. Major Hepatic Complications in Ursodeoxycholic Acid-Treated Patients With Primary Biliary Cholangitis: Risk Factors and Time Trends in Incidence and Outcome. Am J Gastroenterol. 2018;113(2):254-64.
6. Lammers WJ, Leeman M, Ponsioen CI, Boonstra K, van Erpecum KJ, Wolfhagen FH, et al. How the concept of biochemical response influenced the management of primary biliary cholangitis over time. Neth J Med. 2016;74(6):240-
7. Nevens F, Andreone P, Mazzella G, Strasser SI, Bowlus C, Invernizzi P, et al. A Placebo-Controlled Trial of Obeticholic Acid in Primary Biliary Cholangitis. N Engl J Med. 2016;375(7):631-43.
8.  Yin Q, Li J, Xia Y, Zhang R. Systematic review and meta-analysis: bezafibrate in patients with primary biliary cirrhosis [Erratum]. Drug Des Devel Ther. 2015;9:5947.
9.  Grigorian AY, Mardini HE, Corpechot C, Poupon R, Levy C. Fenofibrate is effective adjunctive therapy in the treatment of primary biliary cirrhosis: A meta-analysis. Clin Res Hepatol Gastroenterol. 2015;39(3):296-306.
10. Corpechot C, Chazouilleres O, Rousseau A, Le Gruyer A, Habersetzer F, Mathurin P, et al. A Placebo-Controlled Trial of Bezafibrate in Primary Biliary Cholangitis. N Engl J Med. 2018;378(23):2171-81.
11. Reig A, Sese P, Pares A. Effects of Bezafibrate on Outcome and Pruritus in Primary Biliary Cholangitis With Suboptimal Ursodeoxycholic Acid Response. Am J Gastroenterol. 2018;113(1):49-55.

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